Com o recuo do IPCA em julho, termo voltou ao noticiário econômico. Mas para ser considerado como tal, o processo deflacionário precisa ser generalizado, constante e duradouro
Inflação é assunto cotidiano no noticiário econômico no Brasil. A instabilidade é uma característica recorrente na economia do País, e ela muitas vezes se reflete no aumento dos preços. O que não é tão comum é ouvir falar em “deflação” por essas bandas – ou pelo menos não era, até meados de 2022.
O termo – que, grosso modo, se refere à queda generalizada dos preços – voltou às manchetes e passou a causar dúvidas entre consumidores e investidores. O que exatamente significa – e, principalmente, quais são seus impactos?
Deflação é a queda generalizada de preços de produtos e serviços de forma contínua e por um período razoavelmente longo. Embora seja comum ver gente chamando o recuo pontual de índices de inflação de deflação, a queda em um ou dois meses apenas não configura por si só um processo deflacionário e não permite dizer que a deflação é uma tendência.
Não há consenso entre os economistas sobre a duração. É necessário tempo suficiente para que o fenômeno seja considerado tendência.
Os recuos precisam também ser generalizados. Ou seja, devem afetar uma grande gama de produtos e serviços. Reduções em poucos segmentos não significam deflação, mesmo que influenciem negativamente os índices inflacionários.
“Todos os preços precisam cair de forma sistemática para configurar deflação”, explicou Emerson Marçal, coordenador do curso de Economia da FGV em São Paulo. “Índice abaixo de zero em um mês não é considerado deflação”, reforçou.
As quedas necessitam ainda ser contínuas. Os preços são reduzidos seguidamente na tentativa de despertar a demanda.
A deflação ocorre quando a oferta de produtos e serviços é maior do que a demanda. Há mais itens à venda do que as pessoas estão dispostas ou têm condições de comprar.
Pode acontecer também quando há redução do volume de dinheiro em circulação. Menos moeda na praça resulta em compras menores e, consequentemente, diminuição de preços.
É o oposto da inflação, que é o aumento generalizado de preços de produtos e serviços de forma contínua e por um tempo razoavelmente longo.
Já a redução do ritmo da inflação, ou seja, diminuição do índice de um mês para outro, mas ainda positivo, é “desinflação” – e não deflação.
São dois movimentos opostos. Inflação é aumento de preços; deflação, queda.
Em ambos os casos, as mudanças de preços devem ser generalizadas. Precisam ocorrer numa série de produtos e serviços relevantes para o cotidiano, de forma que a média de valores de uma cesta de itens vá para cima ou para baixo. Os movimentos têm que ser contínuos e duradouros.
Num primeiro momento, é fácil pensar que preços em baixa são algo positivo. E são, se as quedas forem pontuais. Afinal, quem não quer pagar menos? Se você tem a expectativa de que daqui a um mês um bem estará mais barato do que hoje, vale a pena esperar para comprar, dependendo de sua urgência.
No entanto, a queda generalizada de preços por tempo indeterminado é ruim. Isso significa que o poder de compra das pessoas está reduzido, e os comerciantes e prestadores de serviços cortam seus ganhos para tentar despertar a demanda.
Tal dinâmica pode criar um ciclo vicioso. Com a tendência de queda, as pessoas adiam suas intenções de consumo na esperança de conseguir preços ainda mais baixos no futuro. O adiamento alimenta a deflação, já que o comércio se vê obrigado a reduzir ainda mais os preços.
“É um processo que se realimenta pela mudança de expectativas”, observou André Braz, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). Há um limite. Se um comerciante faz seu estoque hoje por determinado preço, e tem que vendê-lo amanhã por um valor menor, terá prejuízo.
Se o comerciante não consegue vender, então reduz ou suspende suas encomendas. Consequentemente, a indústria corta ou para a produção. Sem perspectivas de vendas, as empresas não investem. Esse cenário resulta em demissões e até quebra de negócios.
Deflação é sinal de baixo crescimento ou economia estagnada e, nesse sentido, contribui para um quadro de aumento do desemprego, queda do poder aquisitivo da população e depressão da atividade econômica em geral.
“A deflação em si não é boa ou ruim. É mais um reflexo de outras condições na economia. Costuma estar associada a recessões, pois, nesses períodos, a demanda é baixa e deprime os preços”, declarou Estêvão Kopschitz Xavier Bastos, coordenador de Conjuntura no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Mudanças nos preços podem ocorrer não apenas por um aumento (ou uma redução) na demanda, mas também na oferta e seus custos.
“Em 2022, o mundo vive uma inflação alta em grande parte causada por choques de oferta. Assim, se os preços de commodities, fretes e insumos vierem a cair e isso causar deflação, não seria por causa de pouca demanda, mas por causa de uma normalização das condições de oferta”, observou Bastos.
Bastos acrescenta que os bancos centrais, inclusive o do Brasil, sobem seus juros numa tentativa de reduzir a demanda, o que pode ajudar na queda dos preços. “Embora o objetivo seja reduzir a inflação e não causar deflação”, comentou o pesquisador do Ipea.
A deflação é calculada da mesma forma que a inflação. No Brasil, há diversos índices que medem as variações de preços. O principal deles é o IPCA, divulgado mensalmente pelo IBGE.
É com base no IPCA que o Banco Central define a política monetária. No País, adota-se o regime de metas de inflação. O Conselho Monetário Nacional (CMN) define uma meta de IPCA a ser perseguida. Pra atingi-la, o BC, por meio do Comitê de Política Monetária (Copom), aumenta ou reduz a taxa básica de juros, a Selic.
Para calcular o IPCA, o IBGE mede o custo de uma cesta de itens que reflete os padrões de consumo de famílias brasileiras com renda mensal de 1 a 40 salários mínimos.
Esta cesta contém produtos e serviços de alimentação, habitação, vestuário, transportes, saúde, despesas pessoais, educação e comunicação. Há uma ponderação nestes grupos; uns têm peso maior no indicador do que outros, dependendo de sua importância no consumo das famílias.
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Deflação é resultado de oferta maior que a demanda e de menos dinheiro em circulação, condições criadas por atividade econômica fraca. “Deflação é resultado de uma estagnação forte da economia por razões gerais, como uma crise econômica séria”, declarou Marçal. “É um sinal da doença, não a causa”, acrescentou.
Fatores pontuais podem gerar queda de preços sem que se configure um quadro de deflação, como isenção de impostos e barateamento de matérias-primas. Ocorrem por decisão de governos ou oscilações do mercado, não necessariamente por problemas econômicos.
Mesmo que um índice de inflação como o IPCA apresente recuos, não significa que exista um cenário de deflação. Cada segmento tem um peso diferente na composição do indicador, então a queda de preços numa área importante pode puxar a média para baixo, embora a tendência não seja geral.
Há uma série de medidas de políticas econômica e monetária que governos e bancos centrais podem tomar para interromper um processo de deflação.
No passado, a cunhagem de moedas exigia disponibilidade de metais nobres. A escassez de tais materiais podia resultar na diminuição de moeda em circulação e, consequentemente, em deflação. Hoje os países imprimem seu próprio dinheiro e, em caso de falta, é possível imprimir mais.
Os bancos centrais podem reduzir as taxas de juros, tornando o custo do dinheiro mais baixo e ampliando o acesso ao crédito. Empréstimos e financiamentos mais baratos estimulam as pessoas a tomar recursos para gastar e as empresas a contrair dívidas para investir.
Por outro lado, com juros baixos, guardar dinheiro em aplicações financeiras deixa de ser atrativo, o que também estimula o consumo e o investimento. Os governos podem ainda aumentar os gastos públicos e o endividamento.
Marçal cita o exemplo da crise financeira internacional de 2008, quando os Estados Unidos passaram por um período deflacionário de pouco mais de um ano. Políticas adotadas na época evitaram recessão prolongada. O Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA caiu 2,6% em 2009, mas subiu 2,7% em 2010.
Entre as medidas, houve o socorro a bancos e outras empresas em dificuldade, a redução da taxa de juros e o chamado quantitative easing, ou “flexibilização quantitativa”, estratégia pela qual um banco central (no caso, o Fed) compra títulos públicos e privados para aumentar a oferta de dinheiro na economia.
A crise deflagrada em 2008 colocou toda a economia mundial na berlinda, o que mostra o tamanho do rombo necessário para levar um país como os EUA à beira de um processo deflacionário.
O IPCA recuou 0,68% no mês de julho, a maior queda mensal do índice desde o lançamento do Plano Real, em 1994. O período mais longo de IPCA negativo desde então foi de três meses, de julho a setembro de 1998.
Apesar de negativo, o recuo de 0,68% do IPCA em julho de 2022 não é suficiente para configurar um quadro de deflação. Trata-se, provavelmente, de uma situação pontual, puxada majoritariamente por duas categorias de produtos – combustíveis e energia elétrica – e de curta duração.
“É um evento esporádico, e não ditado pela maioria dos preços”, observou André Braz, pesquisador do Ibre. Para configurar um processo de deflação, os preços de uma ampla gama de produtos e serviços precisariam estar em queda, de forma constante e por um longo tempo. O recuo do IPCA em julho de 2022 decorreu majoritariamente de benefício fiscal para a compra de combustíveis e energia elétrica. A iniciativa, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo governo federal no mês anterior, limitou a cobrança de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) à alíquota mínima de cada estado, que varia de 17% a 18%. Os combustíveis e a energia elétrica têm forte impacto nas despesas de transportes e habitação, dois grupos com grande peso no cálculo do IPCA. Por isso, a queda dos seus preços puxou o índice para baixo. Os valores de outros produtos, no entanto, continuaram a aumentar, como alimentos, bens de consumo duráveis e serviços No Brasil, o problema na seara dos preços não costuma ser a deflação, e sim o contrário: a dificuldade de controle da inflação. Nos anos 1980 e início dos anos 1990, o País sofreu com a hiperinflação e, volta e meia, a disparada dos preços preocupa. |
De acordo com Bastos, porém, dados de um índice do custo de vida do Rio de Janeiro disponíveis no Ipeadata mostram que houve deflação de 1928 a 1933, exceto em 1932. A taxa acumulada de recuo foi de 15%. O período coincide com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, a fase mais aguda da chamada Grande Depressão nos Estados Unidos, a Revolução de 1930 e a ascensão do presidente Getulio Vargas e o fim da República Velha.
“Depois disso, não houve deflação significativa, apenas taxas esporádicas em alguns anos, dependendo do índice”, afirmou Bastos. “Estimativas indicam que a deflação era um fenômeno muito mais comum no Brasil no século 19. De acordo com um desses índices, do preço dos alimentos no custo de vida, de 1821 a 1900, tivemos 32 anos em que a taxa de variação dos preços foi negativa”, acrescentou.
Atualmente, os países dispõem de uma série de instrumentos de políticas econômica e monetária para debelar um cenário deflacionário. Mas estas ferramentas surgiram principalmente a partir da segunda metade do século 20.
Um grande exemplo de deflação duradoura ocorreu nos Estados Unidos na década de 1930, durante a chamada Grande Depressão, que ocorreu na esteira da quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. O PIB do país encolheu 30%, a produção industrial caiu 47%, o desemprego ultrapassou 20% e o índice de preços no atacado recuou 33%. Os dados são da Enciclopédia Britannica.
A crise começou a arrefecer a partir de 1933 com o New Deal, programa de recuperação lançado pelo presidente Franklin Delano Roosevelt. O estado passou a intervir na economia, um novo paradigma para os EUA de então.
A Grande Depressão gerou efeitos ao redor do mundo. No Brasil, o governo de Getulio Vargas comprou e incinerou milhões de sacas de café, principal produto exportado pelo País à época, com o objetivo reduzir a sua oferta e segurar os preços.
O Japão dos anos 1990 é outro exemplo. O país entrou em crise após o estouro de uma bolha nos mercados imobiliário e de ações, e a economia se arrastou pelo resto da década.
“Na história recente, o principal exemplo [de deflação] é o Japão. Apresentou queda no índice preços ao consumidor de 1999 a 2005, mas com taxas sempre entre zero e -1%”, disse Xavier. Depois da eclosão da crise financeira internacional, em 2008, houve mais deflação no Japão de 2009 a 2012. “A queda acumulada nesses quatro anos foi de -2,4%. Em 2020, novamente uma taxa negativa, de -1,2%”, declarou.
Até hoje os fantasmas da deflação assombram o país. O Japão tem baixo crescimento em média, alternando períodos de avanço e de queda. O cenário deflacionário foi deflagrado lá atrás, mas a estagnação atual tem outras razões.
O Japão é um país desenvolvido, tem mercado maduro, população idosa, pouca abertura à imigração e um enorme nível de poupança interna. Isso significa que as pessoas guardam dinheiro e o consumo não aquece. Ao contrário do resto do mundo, o banco central japonês mantém hoje uma política monetária relaxada para tentar sustentar uma meta de inflação anual de 2%.
Marçal considera que o período de queda de preços ocorrido em 2008 e 2009 nos Estados Unidos colocou o país à beira de um processo de deflação, mas o quadro foi revertido antes que a situação se consolidasse. A crise nos EUA foi resultado da quebra do mercado de hipotecas do país.
“Costuma ser o inverso: a recessão leva à deflação. Ou, ainda, a deflação pode ser um dos aspectos da recessão”, observou Bastos.
Deflação e recessão são dois conceitos que caminham juntos. Um período longo de deflação é sintoma de que algo vai mal na economia. “É difícil ver deflação com crescimento econômico. [Deflação e recessão] andam conjuntamente”, afirmou Marçal.
Países em recessão, no entanto, não têm obrigatoriamente deflação. O Brasil, por exemplo, já passou por períodos recessivos recentes, com queda do PIB, sem que houvesse recuo generalizado dos preços.
Tanto um período longo de deflação como uma taxa de inflação fora de controle são ruins. “Inflação boa é na meta”, observou Braz. No Brasil, a meta definida pelo CMN para 2022 é de 3,5%. Há um intervalo de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo, o teto e o piso da meta, respectivamente.
Alguma inflação, mas sob controle, é considerada benéfica por alguns economistas – embora essa não seja uma visão unânime. Serve como um termômetro da economia. Aponta para a sustentabilidade do consumo das famílias e o crescimento do PIB.
Inflação sob controle “ancora” as expectativas dos agentes econômicos. Preços são fixados de antemão. Se o empresário não confia na capacidade do BC de manter o índice na meta, ele repassa para os preços uma expectativa maior de inflação, mesmo antes da previsão se confirmar.
Mas se a autoridade monetária cumpre regularmente a meta, não há razão para tais reajustes. “O que faz com que os preços aumentem é a desancoragem de expectativas”, comentou Braz.
A inflação alta corrói o poder de compra da população. O salário que cobre o consumo de um mês já não é suficiente para fazer o mesmo no próximo. Aumentam as incertezas sobre a economia, o planejamento torna-se difícil e há desestruturação do sistema financeiro.
Deflação prolongada pode gerar um ciclo vicioso, como visto anteriormente. É sinal de economia estagnada ou recessão, o que resulta em fechamento de empresas, aumento do desemprego, diminuição da renda da população e ampliação da desigualdade.
“O melhor é a estabilidade de preços. Mas uma inflação baixa pode estar associada a períodos de crescimento e elevado nível de emprego. Já a deflação costuma estar associada a períodos de recessão e alto desemprego. Por isso, não pela inflação ou deflação, mas pelo estado da economia que elas indicam, talvez a deflação seja pior. Mas a inflação deve ser sempre bem baixa”, concluiu Bastos.
Fonte: Infomoney